Entrei em uma daquelas casas abandonadas e a ocupei.
Era uma daquelas casas usadas em cenário de filme de terror
trash dos anos oitenta: Quase caindo aos pedaços, mas que possuía grandes
expectativas.
Recebi o convite inesperado de Stella, de um jeito acanhado.
Era alguma noite de férias. Nós conversávamos online e ela veio com a surpresa
de que queria que eu a acompanhasse.
Stella sempre foi a minha maior representação de mistério.
Ela tinha algo... algo que eu nunca tinha visto nos meus ingênuos 20 anos de
vida. Quando ela passava perto de mim eu sentia aquele frio na barriga,
acompanhado de uma timidez que me impedia até mesmo de conseguir cumprimenta-la
ou olha-la nos olhos. Ela tinha 24 e experiência de vida de pelo menos 60 em
vista da minha. Tinha visto coisas que eu desejava ter visto, vivido; coisas
que me inspiravam. Ela era extremamente criativa, de uma escrita que te faz
gozar, ejacular, sem sentir uma mínima parcela de ar nos pulmões, e isso durava
horas.
Quando surgiu o convite eu me peguei em um momento onde eu
pensei chegar perto do paraíso, mas apesar das expectativas eu sabia que estava
entrando em território frágil. Sabia que a ordem de despejo chegaria.
Já passei por muitas experiências desse tipo na minha vida.
Já estive em vários lugares. Existiam aqueles que me inspiravam e pareciam
irreconhecíveis e inconciliáveis; existiam aqueles que eu sabia que entraria
uma hora, que não existia chances de fuga; existiam aqueles que pareciam a casa
dos meus pais, mas eu, como uma adolescente, em período de completa
instabilidade, desejava emancipação.
Era uma noite de início de agosto. Estávamos há dias na
porta da casa, apenas observando e decidindo se entraríamos. Havia um “quê” de
receio do que aconteceria no momento que entrássemos ali.
Antes desse momento, Stella havia passado por lugares
traumáticos. Viu coisas inimagináveis, lugares que a agrediam, enganavam e
traiam. Lugares que decepcionavam, cujas lembranças só causam dor e ódio.
Apesar de ser uma pessoa livre, Stella tinha maneiras
particulares de encarar e se estabilizar em um território novo: Ela entra pra
ficar. Sem viagens.
No início Stella quis fugir, enquanto nós ainda estávamos
paradas observando a entrada da casa. Convenci-a de arriscar.
À minha confirmação, ela mostrou contentação. Demos as mãos
e entramos juntas.
À primeira vista parecia ideal. Estávamos há dias trancadas
ali. Era o nosso espaço, que nós estávamos construindo juntas, até que um dia
ouvimos um ruído vindo da porta e uns estalos no piso de madeira velha corrida,
que aparentava estar ali há pelo menos um século. Nosso espaço era o que
sustentava o que eu considerava nós, e os primeiros sinais de ameaça a isso
apareceram uma semana depois.
Como toda cabana de filmes de terror, com o passar do tempo aparecem
monstros, animais, demônios, espíritos que tentam possuir... e nós já não
éramos mais nós.
Stella mostrou uma insegurança, uma falta de conforto à
nossa estadia naquela casa, e eu insisti. Insisti que era apenas receio de que
ela desabasse, mas que isso não poderia ser certo apenas por ouvirmos ruídos,
que poderiam vir apenas de algum esquilo que passava por ali, diariamente.
Ao passar de um mês, eu, Bianca, notei-me louca. Tive crises
de pânico naquela casa. Minha falta de conforto era tanta que eu tentei sair
pela janela do quarto do segundo andar um dia. Naquele episódio, Stella me
desconheceu. Uma distância se criou.
Aquela distância entre nós duas, ver Stella passando mais
tempo fora da casa do que dentro, onde eu insistia em ficar, me deixou preocupada
com o que aconteceria. Preocupava-me a chegada da ordem de despejo.
Desesperadamente passei a remendar todas as fissuras do
piso, cobrir os buracos, pintar as paredes... Tentar renovar a casa, para que
não houvesse mais inseguranças sobre ela. Porém, as fissuras ainda estavam ali,
visíveis através dos remendos. Os buracos estavam ali, apesar de cobertos. A
estrutura da casa ainda era frágil, apesar de toda a pintura que foi ali feita.
Stella estava cada vez mais distante. Recebi os estigmas da
data, dos quais a minha imagem jamais se livraria. Percebi que a sua
personalidade também tinha mudado, como a minha.
Um dia ela chegou com a carta... a carta que eu temi por
toda a nossa estadia naquela cabana: a ordem de despejo tinha chegado naquele
momento. Resolvi ignora-la. Disse que a casa não desabaria se eu continuasse a
consertá-la, e com o tempo ela seria nova... e nós poderíamos ter tudo aquilo
que queríamos em breve, que eu mostraria isso a ela. Ela propôs que fossemos
embora, porque a casa poderia cair a qualquer momento. Insisti que isso não
seria necessário, apesar de todas as fissuras.
Como previsto, as paredes estavam pintadas, os pisos
remendados, os buracos cobertos... Já não existiam mais ruídos. Já não existia
mais nada além daquelas fissuras e buracos por trás dos remendos.
Um dia fui à varanda. Passeei pelo bosque que existia ali
perto e observei a casa de longe. Stella ainda estava na porta, sentada na
pequena escada de dois degraus. Estava de cabeça baixa, aparentemente
pensativa. Passei perto dela e ela me deu as mãos, mas não mais que isso.
E naquele momento, enquanto estávamos de mãos dadas, ambas
olhando pras pernas tremulas e tensas, pras folhas secas no chão, pro céu
acinzentado que borrifava levemente, a chuva começou a molhar a ponta dos
nossos sapatos. Ouvi um barulho de janela caindo, que se seguiu por uma série
de estalos. Nos levantamos brevemente e tomamos distância uma da outra. Cada
uma apoiou-se em uma das duas árvores que guardavam aquela cabana por todo
aquele tempo.
Tudo começou com o telhado caindo, uma telha por vez.
Parecia que levaria horas pra que tudo desabasse, mas não durou mais que 10
mintutos. Em um piscar de olhos eu vi a casa toda abaixo. A árvore em que Stella se apoiava
caiu sobre o seu corpo e eu nem ouvi. Estava ali, sozinha. A queda da casa
também levou toda a esperança que restava em mim. Vi todas as minhas memórias se apagarem em
cada um daquelas tábuas quebradas de madeira que se empilhavam de maneira
irregular no chão. Olhei para o corpo de Stella e não senti nada. Tudo estava,
aparentemente, no zero. Eu não me reconhecia mais. Não reconheci as lembranças,
não reconheci Stella e nem os meus planos. Saí correndo pelo bosque, em direção
à estrada. Caminhei por ela por oito minutos aproximadamente, de cabeça erguida
e uma raiva no rosto. Até que esbarrei em uma árvore que bloqueou meu caminho.
Era uma árvore caída na pista. Grande, e ainda estava com as folhas muito
verdes. Olhei para a árvore e a imagem do corpo de Stella, morto e frio, me
veio à cabeça. Nesse momento eu me desesperei. Tudo o que eu sonhava me veio à
cabeça e eu chorei. Chorei como nunca havia chorado antes. Chorava por ter
ignorado a ordem de despejo chegada, a ordem que evitaria tragédias. Eu
ignorei. Era tudo culpa minha.
Insultei Stella em umas treze línguas diferentes, tentando
encontrar algo que não servisse de amarra à culpa da queda da casa. Mas era
minha.
Sentei-me no tronco por umas três horas, lembrando-me da
última imagem que tinha, das minhas mãos dadas com as mãos de Stella, e gritei.
Gritei com força proporcional à angústia de culpa, a terceira face da angústia,
que era a minha única amarra naquele momento. Perdoei-me e a partir disso
cresci. Eu já era maior que as montanhas. Tinha chegado ao paraíso. Sozinha.
Bruna A. Léo
01/10/13
Sabe de uma coisa... Casas caem. Pessoas se vão. Ou morrem.
ResponderExcluirque bom que Bianca achou uma maneira de se perdoar... Afinal, se Stella tinha em si 60 anos de vivencias, aos 24, ela tinha mais do que deveria e Bianca estava no caminho e rumo aparentemente certo.
E, do que adiantaria, de qualquer forma, ficar remoendo o corpo frio, a casa em ruinas e as possibilidades não concretizadas?
A Cronologia do nosso tempo tem uma sensação de seguir pra frente, e é graças a ela que muitas pessoas conseguem não ficar correndo atrás do próprio rabo a vida toda. Somente acordam, dia após dia e entendem que, o que passou são paradigmas para fazer melhor dali pra frente.
Se o barraco desabou, não deixe o seu barco se perder... Afinal, o barraco fica em terra, estável, estático. O barco não. Ele pode ou não se perder, mas quem guia nossos botes, barcos, somos nós mesmos.