terça-feira, 1 de outubro de 2013

A ORDEM DE DESPEJO

Entrei em uma daquelas casas abandonadas e a ocupei.
Era uma daquelas casas usadas em cenário de filme de terror trash dos anos oitenta: Quase caindo aos pedaços, mas que possuía grandes expectativas.
Recebi o convite inesperado de Stella, de um jeito acanhado. Era alguma noite de férias. Nós conversávamos online e ela veio com a surpresa de que queria que eu a acompanhasse.
Stella sempre foi a minha maior representação de mistério. Ela tinha algo... algo que eu nunca tinha visto nos meus ingênuos 20 anos de vida. Quando ela passava perto de mim eu sentia aquele frio na barriga, acompanhado de uma timidez que me impedia até mesmo de conseguir cumprimenta-la ou olha-la nos olhos. Ela tinha 24 e experiência de vida de pelo menos 60 em vista da minha. Tinha visto coisas que eu desejava ter visto, vivido; coisas que me inspiravam. Ela era extremamente criativa, de uma escrita que te faz gozar, ejacular, sem sentir uma mínima parcela de ar nos pulmões, e isso durava horas.
Quando surgiu o convite eu me peguei em um momento onde eu pensei chegar perto do paraíso, mas apesar das expectativas eu sabia que estava entrando em território frágil. Sabia que a ordem de despejo chegaria.
Já passei por muitas experiências desse tipo na minha vida. Já estive em vários lugares. Existiam aqueles que me inspiravam e pareciam irreconhecíveis e inconciliáveis; existiam aqueles que eu sabia que entraria uma hora, que não existia chances de fuga; existiam aqueles que pareciam a casa dos meus pais, mas eu, como uma adolescente, em período de completa instabilidade, desejava emancipação.
Era uma noite de início de agosto. Estávamos há dias na porta da casa, apenas observando e decidindo se entraríamos. Havia um “quê” de receio do que aconteceria no momento que entrássemos ali.
Antes desse momento, Stella havia passado por lugares traumáticos. Viu coisas inimagináveis, lugares que a agrediam, enganavam e traiam. Lugares que decepcionavam, cujas lembranças só causam dor e ódio.
Apesar de ser uma pessoa livre, Stella tinha maneiras particulares de encarar e se estabilizar em um território novo: Ela entra pra ficar. Sem viagens.
No início Stella quis fugir, enquanto nós ainda estávamos paradas observando a entrada da casa. Convenci-a de arriscar.
À minha confirmação, ela mostrou contentação. Demos as mãos e entramos juntas.
À primeira vista parecia ideal. Estávamos há dias trancadas ali. Era o nosso espaço, que nós estávamos construindo juntas, até que um dia ouvimos um ruído vindo da porta e uns estalos no piso de madeira velha corrida, que aparentava estar ali há pelo menos um século. Nosso espaço era o que sustentava o que eu considerava nós, e os primeiros sinais de ameaça a isso apareceram uma semana depois.
Como toda cabana de filmes de terror, com o passar do tempo aparecem monstros, animais, demônios, espíritos que tentam possuir... e nós já não éramos mais nós.
Stella mostrou uma insegurança, uma falta de conforto à nossa estadia naquela casa, e eu insisti. Insisti que era apenas receio de que ela desabasse, mas que isso não poderia ser certo apenas por ouvirmos ruídos, que poderiam vir apenas de algum esquilo que passava por ali, diariamente.
Ao passar de um mês, eu, Bianca, notei-me louca. Tive crises de pânico naquela casa. Minha falta de conforto era tanta que eu tentei sair pela janela do quarto do segundo andar um dia. Naquele episódio, Stella me desconheceu. Uma distância se criou.
Aquela distância entre nós duas, ver Stella passando mais tempo fora da casa do que dentro, onde eu insistia em ficar, me deixou preocupada com o que aconteceria. Preocupava-me a chegada da ordem de despejo.
Desesperadamente passei a remendar todas as fissuras do piso, cobrir os buracos, pintar as paredes... Tentar renovar a casa, para que não houvesse mais inseguranças sobre ela. Porém, as fissuras ainda estavam ali, visíveis através dos remendos. Os buracos estavam ali, apesar de cobertos. A estrutura da casa ainda era frágil, apesar de toda a pintura que foi ali feita.
Stella estava cada vez mais distante. Recebi os estigmas da data, dos quais a minha imagem jamais se livraria. Percebi que a sua personalidade também tinha mudado, como a minha.
Um dia ela chegou com a carta... a carta que eu temi por toda a nossa estadia naquela cabana: a ordem de despejo tinha chegado naquele momento. Resolvi ignora-la. Disse que a casa não desabaria se eu continuasse a consertá-la, e com o tempo ela seria nova... e nós poderíamos ter tudo aquilo que queríamos em breve, que eu mostraria isso a ela. Ela propôs que fossemos embora, porque a casa poderia cair a qualquer momento. Insisti que isso não seria necessário, apesar de todas as fissuras.
Como previsto, as paredes estavam pintadas, os pisos remendados, os buracos cobertos... Já não existiam mais ruídos. Já não existia mais nada além daquelas fissuras e buracos por trás dos remendos.
Um dia fui à varanda. Passeei pelo bosque que existia ali perto e observei a casa de longe. Stella ainda estava na porta, sentada na pequena escada de dois degraus. Estava de cabeça baixa, aparentemente pensativa. Passei perto dela e ela me deu as mãos, mas não mais que isso.
E naquele momento, enquanto estávamos de mãos dadas, ambas olhando pras pernas tremulas e tensas, pras folhas secas no chão, pro céu acinzentado que borrifava levemente, a chuva começou a molhar a ponta dos nossos sapatos. Ouvi um barulho de janela caindo, que se seguiu por uma série de estalos. Nos levantamos brevemente e tomamos distância uma da outra. Cada uma apoiou-se em uma das duas árvores que guardavam aquela cabana por todo aquele tempo.
Tudo começou com o telhado caindo, uma telha por vez. Parecia que levaria horas pra que tudo desabasse, mas não durou mais que 10 mintutos. Em um piscar de olhos eu vi a casa toda abaixo. A árvore em que Stella se apoiava caiu sobre o seu corpo e eu nem ouvi. Estava ali, sozinha. A queda da casa também levou toda a esperança que restava em mim. Vi todas as minhas memórias se apagarem em cada um daquelas tábuas quebradas de madeira que se empilhavam de maneira irregular no chão. Olhei para o corpo de Stella e não senti nada. Tudo estava, aparentemente, no zero. Eu não me reconhecia mais. Não reconheci as lembranças, não reconheci Stella e nem os meus planos. Saí correndo pelo bosque, em direção à estrada. Caminhei por ela por oito minutos aproximadamente, de cabeça erguida e uma raiva no rosto. Até que esbarrei em uma árvore que bloqueou meu caminho. Era uma árvore caída na pista. Grande, e ainda estava com as folhas muito verdes. Olhei para a árvore e a imagem do corpo de Stella, morto e frio, me veio à cabeça. Nesse momento eu me desesperei. Tudo o que eu sonhava me veio à cabeça e eu chorei. Chorei como nunca havia chorado antes. Chorava por ter ignorado a ordem de despejo chegada, a ordem que evitaria tragédias. Eu ignorei. Era tudo culpa minha.
Insultei Stella em umas treze línguas diferentes, tentando encontrar algo que não servisse de amarra à culpa da queda da casa. Mas era minha.
Sentei-me no tronco por umas três horas, lembrando-me da última imagem que tinha, das minhas mãos dadas com as mãos de Stella, e gritei. Gritei com força proporcional à angústia de culpa, a terceira face da angústia, que era a minha única amarra naquele momento. Perdoei-me e a partir disso cresci. Eu já era maior que as montanhas. Tinha chegado ao paraíso. Sozinha.


Bruna A. Léo
01/10/13

Um comentário:

  1. Sabe de uma coisa... Casas caem. Pessoas se vão. Ou morrem.

    que bom que Bianca achou uma maneira de se perdoar... Afinal, se Stella tinha em si 60 anos de vivencias, aos 24, ela tinha mais do que deveria e Bianca estava no caminho e rumo aparentemente certo.

    E, do que adiantaria, de qualquer forma, ficar remoendo o corpo frio, a casa em ruinas e as possibilidades não concretizadas?

    A Cronologia do nosso tempo tem uma sensação de seguir pra frente, e é graças a ela que muitas pessoas conseguem não ficar correndo atrás do próprio rabo a vida toda. Somente acordam, dia após dia e entendem que, o que passou são paradigmas para fazer melhor dali pra frente.

    Se o barraco desabou, não deixe o seu barco se perder... Afinal, o barraco fica em terra, estável, estático. O barco não. Ele pode ou não se perder, mas quem guia nossos botes, barcos, somos nós mesmos.

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