segunda-feira, 6 de maio de 2013

Janeiro de 2012


"Nossa vida quotidiana é bombardeada de acasos, mais exatamente encontros fortuitos entre as pessoas e os acontecimentos - aquilo que chamamos de coincidências. Existe co-incidência quando dois acontecimentos inesperados acontecem ao mesmo tempo, quando eles se encontram [...]
No princípio do pesado livro que Tereza carregava embaixo do braço no dia em que viera para a casa de Tomas, Ana encontra Vronsky em circunstâncias estranhas. Estão na plataforma de uma estação e alguém acabara de cair sob o trem. No fim do romance, é Ana que acabara de cair sob o trem. Essa composição simétrica, onde o mesmo motivo aparece no começo e no fim, pode até parecer 'romântica'. Admito que seja, mas somente com a condição de que romântico não signifique para você uma coisa 'inventada', 'artificial', 'sem semelhança com a vida'. Porque é assim mesmo que é composta a vida humana.
Ela é composta como uma partitura musical. O ser humano, guiado pelo sentido da beleza, transpõe o acontecimento fortuito (uma música de Beethoven, a morte numa estação) para fazer disso um tema que, em seguida, fará parte da partitura de sua vida. Voltará ao tema, repetindo-o, modificando-o, desenvolvendo-o e transpondo-o, como faz um compositor com os temas de sua sonata. Ana poderia ter posto fim a seus dias de outra maneira. Mas o tema da estação e da morte, esse tema inesquecível associado ao nascimento do amor, atraiu-a no momento do desespero por sua sombria beleza mesmo nos instantes do mais profundo desespero.
O romance não pode, portanto, ser censurado por seu fascínio pelos encontros misteriosos dos acasos [...], mas podemos, com razão, censurar o homem por ser cego a esses acasos na vida quotidiana, privando assim a vida da sua dimensão de beleza."


Trecho de "A insustentável leveza do ser" de Milan Kundera.

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